Aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada, o projeto de lei 624/2023 busca ampliar o acesso da população de baixa renda à energia solar por meio de um programa de geração de renda pela produção da energia. O objetivo é meritório, mas o texto como foi aprovado pode não produzir o efeito de reduzir as contas pagas pela população de baixa renda, além do risco de elevar a de todos os consumidores de energia nos curto e médio prazos, segundo apontam as distribuidoras de energia e a associação dos consumidores de energia.
Ainda não há um valor fechado da estimativa de quanto as contas podem subir, mas a projeção das entidades é de que irão subir. Por outro lado, a associação de energia solar, favorável ao projeto como foi aprovado, diz que é preciso levar em conta os benefícios sistêmicos da ampliação do acesso à energia solar, que podem trazer uma redução de 6% nas contas de todos até 2031, ou seja, em oito anos.
O texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado, voltar para a Câmara se houver alterações, e ser sancionado pelo presidente da República para virar lei.
O que diz o projeto?
A proposta é substituir gradativamente o programa Tarifa Social de Energia Elétrica por um programa de geração de energia elétrica, o Programa Renda Básica Energética, ou Rebe.
O projeto busca financiar a instalação de sistemas de energia renovável para os consumidores que hoje se beneficiam da Tarifa Social de Energia Elétrica. A ideia inicial é retirar o custo da Tarifa Social da CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), mas isso pode não acontecer gerando o efeito contrário, de pressão nas contas. Há uma estimativa de que seriam necessários R$ 56 bilhões em recursos para substituir a Tarifa Social pelo Rebe.
As famílias de baixa renda terão acesso aos painéis solares?
Há uma crítica de que só as classes mais favorecidas têm energia solar porque é necessário ter recursos para fazer o investimento para comprar e instalar os painéis. Apesar disso, o projeto não amplia o acesso da população de baixa renda aos painéis, mas permite que a baixa renda obtenha crédito em função de produção de energia solar, alterando o conceito atual de Geração Distribuída (GD), que eu explico mais abaixo.
Quais as diferenças entre os dois programas?
A Tarifa Social, o programa atual de energia para a baixa renda, é um desconto no valor das contas de luz de baixa renda inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) ou que tenham entre seus membros algum beneficiário do Benefício de Prestação Continuada (BPC)
Os recursos para o desconto vêm da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que é bancada pelos demais consumidores de energia elétrica do chamado mercado cativo (que não produzem a própria energia e recebem das distribuidoras de energia). Em 2023, o custo do programa Tarifa Social na CDE foi de R$ 5,8 bilhões.
O Programa Renda Básica Energética que a lei cria, prevê que a ENBPar (empresa pública que, entre outras coisas, operacionaliza os programas de universalização do acesso à energia elétrica), contrate produtores de energia solar (fazendas solares) que vão gerar créditos com a produção de energia injetada na rede, pela chamada GD (geração distribuída).
Esse crédito vai ser direcionado para o morador de baixa renda, que não necessariamente está recebendo a energia do painel solar, que pode estar longe dele, mas estará recebendo o crédito dessa energia na conta de luz.
Por que a tarifa pode subir?
Segundo Ricardo Brandão, diretor de Regulação da Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), a maior parcela do consumidor de baixa renda consome até 70 kWh/mês:
“Esse consumidor tem um desconto muito alto hoje, que é por faixa. Então ele não vai ter mais desconto com a nova proposta, vai ter menos. Porque o crédito de quem tem GD por assinatura, que é a mesma lógica, o desconto médio é de 20%. Ele recebendo crédito, para os mais vulneráveis o desconto de baixa renda do Tarifa Social é maior do que o crédito.
Outro ponto é que a CDE já é pressionada pelos subsídios à GD (Geração Distribuída), e como o crédito para baixa renda será feito por meio de GD esse custo,que será repassado aos demais consumidores de energia elétrica, tende a crescer ainda mais. Em 2024, o custo dos subsídios à GD foi de R$ 7,14 bilhões na CDE . Este ano até maio os subsídios à GD já bateram R$ 3,37 bilhões.
A soma de todos os subsídios foi de R$ 40,3 bilhões em 2023. Isso significa que se não fossem os subsídios, a conta de luz poderia ser 13,21 % mais barata, em média.
Há outros riscos?
Há um risco adicional de explosão dos subsídios à GD na CDE, porque o projeto de lei altera o conceito de geração distribuída. Segundo a Lei 14.300 de 2021, ou marco legal da Geração Distribuída: “a micro e a minigeração distribuída, mais conhecidas como geração distribuída (GD), são modalidades que permitem a geração de energia elétrica no local ou próximo ao ponto de consumo”.
O projeto de lei prevê a revogação do artigo 28 do marco legal, que diz que a microgeração e a minigeração distribuídas caracterizam-se como produção de energia elétrica para consumo próprio
Segundo as distribuidoras de energia, o projeto não irá beneficiar as famílias de baixa renda, apenas as empresas de energia solar que poderão usufruir de um subsídio que foi pensado para quem quer produzir a própria energia, e não para grandes empresas de energia solar,
O que diz a associação dos consumidores de energia?
A Abrace Energia, associação que representa os grandes consumidores de energia, se posiciona contra o texto atual do projeto de lei e diz que o texto precisaria de diversos ajustes para evitar impactos negativos, via aumento de CDE, para os consumidores em curto e médio prazos. A associação entende que a proposta atual tem o potencial de aumentar ainda mais o custo da CDE para os consumidores brasileiros, por duas vias.
(i) pelo aumento do subsídio específico da GD, que deve aumentar significativamente com o Rebe; e
(ii) pelo aumento da CDE para custear a compra e instalação dos equipamentos destinados ao Rebe – embora o projeto tenha tentado evitar passar à CDE esse ônus, na redação proposta há margem para que o custo impacte os encargos pagos pelos consumidores. Além do provável aumento na CDE, o PL traz ainda uma série de mudanças não relacionadas à instalação de painéis solares para suprir energia para consumidores de baixa renda, com potencial de impactos negativos para a CDE.
O que diz a associação da energia solar?
A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) defende a aprovação do projeto como está hoje por considerar que ele aprimora o marco legal da Geração Distribuída. Eu conversei com a vice-presidente do Conselho de Administração da Absolar, Bárbara Rubim.
“Dificil saber como ficará uma regra futura, mas da forma como ela está hoje, a baixa renda que tem desconto de até 70% pela Tarifa Social, se for substituído por um sistema de geração própria [Rebe], o que ele teria que pagar é o residual do Fio B [custo de distribuição], pela regra de transição. Agora estamos em 30%, sendo o teto de 90%, então o consumidor pagaria no máximo 25% da tarifa. No pior cenário, ele teria o mesmo desconto que tem hoje, mas ele pode ter uma redução maior e haverá ainda a redução do subsídio da tarifa social, que hoje está em R$ 1,5 bi na CDE”.
Questionada sobre a pressão no subsídio à GD na CDE, Bárbara Rubim disse que a transferência para o subsídio à GD não é de 100%, pois o consumidor estará pagando o Fio B
“Há uma nova resolução com as diretrizas que a Aneel tem que seguir para fazer o encontro de contas para GD, e aí teremos uma análise completa. Porque a fala de pressão à CDE é falaciosa, porque não leva em consideração os benefícios sistêmicos da geração distribuída para o sistema elétrico. As análises que já fizemos mostram que quando a gente leva em consideração não só os custos de distribuição, que é o único fator quando olhamos para a conta da CDE, mas também a redução dos custos com a geração e com perdas técnicas, a conta é positiva. É um cenário que até 2031, a GD leva a uma redução para todos os consumidores da conta de luz de cerca de 6%, por isso é importante que seja feito o encontro de contas pela Aneel o quanto antes”, completa.